O ATENDIMENTO À EDUCAÇÃO BÁSICA EM SANTA CATARINA : REPERCUSSÕES DO FUNDEF E DO FUNDEB NA MATRÍCULA PÚBLICA[1].
BASIC EDUCATION IN SANTA CATARINA: THE IMPACT OF FUNDEF AND FUNDEB ON PUBLIC SCHOOL ENROLLMENT
Marcos Edgar Bassi[2]
Phelipe Pires Fermino[3]
Resumo: O presente trabalho examina a tendência das matrículas públicas de educação básica do Estado de Santa Catarina entre 1997 e 2009, período em que se encontram em funcionamento dispositivos que redirecionam a trajetória dos recursos do financiamento da educação em nível nacional, primeiro com o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), vigente entre 1998 e 2006, e, depois com o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), a partir de 2007. Trata-se de um estudo de natureza quantitativa que examina séries históricas construídas com informações sobre matrículas disponíveis nos Censos Escolares realizados anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). As séries históricas mostram, entre outros aspectos, o crescimento da rede municipal com intensa municipalização do ensino fundamental e a redução do atendimento estadual devido queda das matrículas desse nível de ensino e da educação infantil sob sua alçada.
Palavras chaves: Política educacional. Educação básica. Financiamento da educação. Municipalização do ensino. Fundef/Fundeb.
Abstract: This paper examines enrollment trends in public basic education in the State of Santa Catarina between 1997 and 2009, a period in which devices that redirect the resources of education funding at the national level are in effect, first with the Fund for the Improvement of Fundamental Education and for Enhancing the value of the Teaching Profession (FUNDEF) in effect between 1998 and 2006, and later with the Fund for the Improvement of Basic Education and for Enhancing the Value of the Education Profession (FUNDEB), as of 2007. This is a quantitative study that examines historical series constructed with available information on school enrollment from School Census conducted annually by the Anisio Teixeira National Institute for Research and Educational Studies (INEP). The historical data show, among other things, a significant growth of the municipal sector, due to the primary school municipalization process, and a reduction in the state participation because of enrollment decrease at this level and early childhood education within its jurisdiction.
Keywords: Educational policy. Basic education. Education funding. Municipalization of education. FUNDEF/FUNDEB.
Introdução
A configuração da oferta da Educação Básica em Santa Catarina , especificamente no que se refere ao atendimento público municipal e estadual, sofreu significativa alteração em apenas de 12 anos, entre 1998 e 2009. De acordo com os Censos Escolares do período, colhidos pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), no primeiro ano a rede estadual detinha 55% da oferta, o conjunto das redes municipais 32%, restando à rede privada pouco mais de 12% e menos de 1% para a rede federal. No último ano da série, enquanto a rede estadual, com tendência descendente, recuou para 44%, a rede municipal, em sentido oposto, saltou para 43% sua participação na oferta da educação básica. As redes privada e federal, por sua vez, quase não tiveram alterados seus patamares anteriores. Esse processo, embora com menos intensidade, acompanha a tendência verificada em nível nacional no qual a rede municipal, em 2009, já é responsável por 46% da oferta de educação básica, cabendo à rede estadual 39%. Pouco mais de 14% é a soma das redes privada e federal. O principal fator de indução nos desempenhos opostos das redes estadual e municipal decorre de alterações na legislação constitucional que regula o financiamento público da educação. Entre 1998 e 2006 esteve em vigência o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), substituído, a partir de 2007 pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).
Diante deste contexto, este artigo detém-se na análise das tendências das matrículas de educação básica especificamente da rede estadual e municipais catarinenses entre 1997 e 2009, tendo em vista os efeitos do Fundef e do Fundeb. As informações sobre as matrículas foram colhidas nos bancos de dados dos Censos Escolares[4] do período, disponibilizadas na página eletrônica na Internet do INEP. O agrupamento em tabelas e gráficos constituiu séries históricas agregadas por dependência administrativa (nível de governo estadual e municipal) e por tipo de atendimento (etapas e modalidades de ensino) que possibilitaram a análise das tendências das matrículas.
A primeira seção do texto relata brevemente as alterações na legislação sobre financiamento da educação que introduziram os fundos contábeis. A seção seguinte discute os efeitos indutores dos fundos contábeis, especialmente os provocados pelo Fundef, na oferta da Educação Básica pública em Santa Catarina. A última seção é reservada às conclusões.
Alterações no financiamento da educação e efeitos na tendência das matrículas
A década dos anos 1990 constitui um marco no âmbito das reformas educacionais no Brasil. O financiamento da educação vem merecendo destaque, desde então, considerando-se a criação de fundos contábeis em cada unidade da federação que alterou a trajetória dos recursos financeiros gerados pela vinculação da receita de impostos e transferências estabelecida no Artigo 212 da Constituição Federal de 1988 (CF/88).
Por meio deste ordenamento legal, as esferas de governo tiveram que destinar, anualmente, desde então, um percentual mínimo da receita para a manutenção e o desenvolvimento do ensino público (MDE)[5]. Os governos estaduais, o Distrito Federal e governos municipais devem destinar, pelo menos, 25% da sua receita de impostos e transferências para cobrir despesas com MDE de suas redes, enquanto a União deve reservar, pelo menos, 18% para o mesmo objetivo. Além disso, 50% dessa vinculação (Art. 60, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) deveriam ter sido aplicadas de modo focalizado na eliminação do analfabetismo e na universalização do ensino fundamental, durante os dez primeiros anos da CF/88, a contar de 1989. Nenhum desses dois objetivos havia sido alcançado quando ocorreu a primeira alteração nessa regra de aplicação, devido em parte a não destinação pela União da parcela que lhe cabia na aplicação dos recursos financeiros. (OLIVEIRA, 2001, p. 114-5)
Em 1996, no primeiro mandato do Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), a CF/88 seria alterada nesses quesitos relativos ao financiamento da educação, primeiro com a implementação do Fundef (BRASIL, 1996a; 1996c) substituído, mais tarde, no final do primeiro mandado do Governo Lula (2003-2006), pelo Fundeb (BRASIL, 2006a; 2006b; 2007).
A mesma legislação que introduziu o Fundef em cada estado da federação também redefiniu com mais clareza as competências educacionais de estados e dos municípios e priorizou financeiramente o ensino fundamental. Desse modo, coube aos municípios a responsabilidade pela educação infantil e pelo ensino fundamental, e aos estados o ensino fundamental e médio. Foi mais bem caracterizada a função redistributiva e supletiva que cabe à União, por meio da assistência técnica e financeira aos estados e aos municípios (CF/88, Artigo 211).
A prioridade ao ensino fundamental foi traduzida pela elevação do percentual de subvinculação de 50% para 60% da receita vinculada que os governos estaduais e municipais têm de obrigatoriamente aplicar na educação. Porém, a União foi poupada desse esforço, uma vez que sua participação financeira recuou para apenas 30% da sua receita vinculada e apenas para a complementação dos fundos estaduais cujo valor por aluno não alcança um valor mínimo por aluno definido nacionalmente. Por fim, a garantia de aplicação desses recursos foi obtida pela criação do Fundef em cada unidade da federação, o qual passou a recolher automaticamente a maior parcela daqueles 60% da receita vinculada de impostos para impostos para a educação de estados e municípios.
A redistribuição da receita desses fundos passou a ocorrer de acordo com o número de alunos no ensino fundamental matriculados em cada rede pública estadual e municipal de ensino. O repasse de recursos obedeceu a coeficientes de distribuição de cada rede em relação ao total das matrículas no estado, calculado com base nos dados do Censo Escolar do ano anterior. Esse mecanismo correspondeu a um valor por aluno/ano enviado às redes detentoras das matrículas do ensino fundamental. Ao longo do período, o valor por aluno ano sofreu alterações de forma a contemplar as diferenciações dentro do ensino fundamental, conforme sejam as séries iniciais ou finais, urbanas ou rurais e de educação especial. Em 2000, as matrículas das séries finais e de educação especial do ensino fundamental passaram a corresponder a um valor aluno/ano 5% superior as das séries iniciais. Depois, em 2005, no penúltimo ano da vigência do Fundef, nova diferenciação elevou em 2% as matrículas das séries iniciais na zona rural, em 5% as das séries finais da zona urbana e em 7% as das séries finais rurais e de educação especial, urbanas e rurais, em relação ao valor por aluno das matrículas das séries iniciais na zona urbana. Desse modo, o valor por aluno tornou-se um estímulo para o crescimento do número de matrículas, uma medida de equilíbrio e de equiparação dos gastos públicos por aluno e uma moeda de troca entre as duas esferas de governo em cada âmbito estadual. Os governos que não mantinham matrículas de ensino fundamental regular ou as mantinham em pequeno número tiveram parte de suas receitas redistribuídas para aqueles que as tinham em maior número ou ampliaram o seu atendimento.
Com esses mecanismos de retenção e repasse os governos, principalmente os municipais, foram induzidos a elevar o número de matrículas em suas redes para obtenção de receita ou para, pelo menos, recuperar a parcela automaticamente retida pelo Fundef.
No que se refere aos efeitos do Fundef, já nos seus primeiros anos de vigência, houve em âmbito nacional um intenso processo de municipalização do ensino fundamental. Movimento verificado tanto na transferência de matrículas da esfera estadual para a municipal, quanto na significativa expansão da oferta, possivelmente pela inclusão de crianças fora da escola (BASSI; GIL, 1999). Em 1999, já era possível constatar a quase universalização do ensino fundamental para as crianças e adolescentes entre 7 e 14 anos de idade matriculadas no ensino regular.
A despeito dos efeitos da omissão da União na complementação financeira (DAVIES, 1999), a redistribuição dos recursos financeiros promovida pelo Fundef atenuou as grandes disparidades de gasto por aluno do ensino fundamental existente entre a rede estadual e as redes municipais no âmbito de cada Estado. Ocorreu imediata e substancial transferência de recursos financeiros dos governos estaduais aos municipais, na maioria dos estados da Região Nordeste, onde o ensino fundamental se encontrava municipalizado desde a década de 1970. O oposto ocorreu em estados das Regiões Sul e Sudeste, onde a matrícula se concentrava na rede estadual. No início, os municípios transferiram recursos financeiros aos estados. Mas, em poucos anos, o intenso processo de municipalização induzido pelo Fundef reverteu essa direção, tornando alguns governos estaduais transferidores de receita aos municípios.
Apesar do efeito mais evidente na indução à municipalização do ensino fundamental, as implicações do Fundef não se restringiram a esse processo. Houve repercussões em outras etapas e modalidades da educação básica. Na modalidade pré-escolar da educação infantil, por exemplo, ocorreu redução do número de matrículas públicas exatamente no ano de início do Fundef. (BASSI, 2001, p. 51-2). Pode-se dizer que a prioridade e a focalização do financiamento no ensino fundamental desestimularam os dirigentes educacionais no atendimento ao restante da Educação Básica e, consequentemente, como uma negação dos direitos educacionais consagrados na CF/88 (Artigo 208).
O Fundef foi substituído pelo Fundeb a partir de 2007. O Fundeb preservou os mecanismos de captura e de redistribuição de recursos instaurados pelo Fundef. Estendeu, porém, significativamente a abrangência de financiamento a todas as etapas e modalidades da educação básica, contando, para isso, com um maior aporte de recursos decorrente da elevação do percentual subvinculado de um número maior de impostos (BRASIL, 2007). Implantado também em âmbito estadual, os novos fundos processam operações contábeis que recolhem a maior parte da receita gerada pela vinculação que os Estados, o DF e os Municípios têm de destinar às despesas com MDE e, depois, as redistribui aos governos, proporcionalmente de acordo com o número de matrículas de Educação Básica, obedecendo às competências estabelecidas no artigo 211 da CF/88.
Para as matrículas de cada etapa e modalidade da educação básica foram fixados diferentes fatores de ponderação com variação entre 0,7 e 1,3 pontos para redistribuição de recursos em relação às das séries iniciais do ensino fundamental urbano. Assim, a título de exemplo, em 2007, enquanto para estas últimas foi estabelecido o peso de referência 1, as matrículas em creches receberam o fator de ponderação 0,8, as de pré-escola 0,9, as séries iniciais de ensino fundamental no campo 1,05, as do ensino médio urbano e de educação especial 1,20 e as do ensino médio de tempo integral 1,3 (BRASIL, 2007). Algumas dessas ponderações seriam posteriormente ligeiramente modificadas pela Comissão Intergovernamental de Financiamento da Educação Básica de Qualidade instituída para este fim na mesma legislação do Fundeb.
Os fatores de ponderação combinados com as matrículas e os recursos dos Fundos em intrincadas e complexas fórmulas resultam em diferentes valores por aluno para cada nível e modalidade de educação básica. Nesse bojo, outros dispositivos estabelecidos na legislação consideraram as matrículas de creche e de educação especial mantidas pelas instituições conveniadas com o poder público para fins de recebimento de receita. Mas também limitaram por um prazo de quatro anos a contabilização das matrículas conveniadas de pré-escola.
Assim, de forma semelhante ao que ocorreu com o Fundef, a expectativa é que os diferentes valores por aluno estabelecidos pelo Fundeb a partir desses fatores de ponderação também venham a orientar os gestores educacionais no sentido de ampliarem o número de matrículas dos níveis de ensino sob sua competência. A incorporação de matrículas funciona como mecanismo de recuperação e/ou de obtenção de receita adicional.
Efeitos indutores dos fundos na matrícula pública da educação básica catarinense
Gráfico 1 – Contribuição e receita do governo estadual e dos governos municipais junto ao Fundef e ao Fundeb – 1998-2001.
Fontes: STN e TCE/SC.
Valores a preços de 2009 atualizados com base no IPCA/IBGE)
Elaboração dos autores.
O processo de municipalização do ensino fundamental durante o Fundef, ao lado da ampliação de outras modalidades da educação básica sob a responsabilidade dos municípios e da redução do atendimento da rede estadual, justifica esta transferência.
Estudo realizado em municípios da região Oeste catarinense, entre os anos de 1998 a 2003, constatou “um significativo incremento de alunos no ensino fundamental da rede municipal” (PENSIN; REBELATTO; NARDI, 2006, p. 7). Juntamente com o incremento de matrículas, os autores verificaram o crescimento paulatino do percentual de retorno financeiro aos municípios estudados, em relação a sua contribuição ao Fundef. Outro aspecto particularmente interessante do estudo é que a municipalização ocorreu em meio a um importante processo de imigração regional que, mesmo reduzindo o número total de alunos, afetou especificamente a rede estadual. (Idem, ibidem, p. 6).
Valle, Mizuki e Castro (2004) também destacam a municipalização no período, mas menosprezam a importância do Fundef nesse processo. As autoras destacam o ano de 1997 como o marco da maior intensidade da municipalização do ensino fundamental que evolui progressivamente até 2002, último ano da série histórica analisada. O que as autoras não mencionam é que aquele ano antecedeu a efetiva entrada em vigor do Fundef, quando as redes municipais se anteciparam no incremento de matrículas de modo a se precaverem quanto aos impactos sobre suas receitas. As autoras também destacam o movimento de municipalização nas séries inicias do ensino fundamental em que as redes municipais ultrapassaram a rede estadual na oferta de matrículas já em 1998.
O presente artigo atualiza a análise da municipalização até o ano de 2009, procurando ressaltar a importância decisiva do Fundef e incorporar os efeitos do Fundeb sobre a educação básica.
A iminente entrada em vigor do Fundef em 1998 já provoca, mesmo um ano antes, um intenso movimento de transferência de matrículas da esfera estadual para a municipal (Gráfico 2), que corresponde à transferência de recursos acima destacada.
Até 2006, a rede municipal agregou aproximadamente 100 mil matrículas do ensino fundamental regular. Nesse ano coincidem o fim do Fundef, o cruzamento das tendências opostas das redes estadual e municipal e o momento em que a rede municipal atinge sua mais elevada marca e tem início uma inversão na tendência de crescimento. Considerando apenas as duas redes no atendimento ao ensino fundamental, a rede estadual detinha 62% das matrículas do ensino fundamental em 1997, enquanto os municípios atendiam a 38%. Em 2008, inversamente, as redes municipais passaram a atender 52% das matrículas e o estado os outros 48%.
Gráfico 2 – Evolução da matrícula inicial do ensino fundamental da rede pública estadual e municipal de ensino – 1997-2009.
Fontes: BRASIL. MEC. INEP. Sinopses estatísticas 1997 a 2009.
Elaboração dos autores
Convém ressaltar que a curva descendente da matrícula estadual é mais acentuada que a ascendente municipal. Essa queda não se deve apenas à municipalização, mas também ao efeito demográfico da diminuição da população brasileira nas faixas etárias de ingresso nas primeiras séries do ensino fundamental e a redução na defasagem idade/série dos alunos (MEC, 2007). Esta última resultante dos programas de correção do fluxo escolar implantados pelas redes de ensino. Some-se a isso a mudança na metodologia de realização do Censo Escolar implantada pelo INEP em 2007, o Educacenso, que ao informatizar a coleta de informações educacionais eliminou as matrículas duplicadas. Nos três últimos anos a própria rede municipal recebeu esses efeitos.
A municipalização do ensino fundamental fica mais evidente quando se observa o comportamento das matrículas nas séries iniciais e finais do ensino fundamental (Gráfico 3).
Gráfico 3 – Evolução da matrícula inicial das séries iniciais e finais do ensino fundamental da rede pública estadual e municipal de ensino – 1997-2009.
Fontes: BRASIL. MEC. INEP. Sinopses estatísticas 1997 a 2009.
Elaboração dos autores
Tanto nas séries iniciais como nas finais os municípios vêm continuamente ocupando o espaço deixado pela rede estadual. Mas mesmo a rede municipal parece ter esgotado o ritmo ascendente evidente até 2006, pelo menos nas séries iniciais, possivelmente devido ao impacto dos fatores que vinham repercutindo na rede estadual. A entrada em funcionamento da Fundeb a partir de 2007, ao definir valores por aluno para todos os níveis e modalidades da educação básica, alguns deles mais elevados que o do ensino fundamental, introduziu novos indutores per capita mais atraentes aos gestores públicos municipais e estaduais. De qualquer forma, o ensino fundamental já se encontrava bastante próximo da universalização do atendimento para a faixa etária correspondente de 7 a 14 anos de idade.
Esse conjunto combinado de fatores também está na base da explicação da reversão da tendência ascendente das séries iniciais da rede municipal até 2006. Nem mesmo a incorporação das matrículas das crianças de 6 anos de idade no ensino fundamental, determinada pela extensão da obrigatoriedade a esta faixa de idade nesse período final, impediu a reversão. A tendência ascendente da rede municipal permanece presente, mesmo atenuada a partir de 2005, na evolução das matrículas das séries finais.
Caberia uma investigação mais acurada em outro trabalho sobre os fatores que se somaram no encolhimento da rede estadual de ensino fundamental, uma vez que a perda de matrículas significou a transferência de recursos financeiros, através do Fundef e depois do Fundeb, para os municípios. Uma provável hipótese é de que o custo de manutenção da rede estadual de ensino fundamental seja substancialmente superior ao valor por aluno estabelecido pelos fundos. Desse modo, a municipalização, mesmo transferindo receita, liberaria aos cofres do governo estadual recursos antes necessários à complementação do elevado custo desta etapa do ensino.
Na educação infantil, apesar da preponderância da rede municipal, também se pode constatar movimentos na matrícula de alguma forma associados aos mecanismos de financiamento aqui abordados.
Gráfico 4 – Evolução da matrícula inicial da educação infantil (creches e pré-escola) da rede pública estadual e municipal de ensino – 1997-2009.
Fontes: BRASIL. MEC. INEP. Sinopses estatísticas 1997 a 2009.
Elaboração dos autores
O Gráfico 4 mostra as tendências continuamente ascendentes das matrículas municipais tanto de creches quanto de pré-escolas, exceto pelo recuo nas matrículas entre 2005 e 2007 desta última modalidade, provavelmente devido à redução das matrículas das crianças de 6 anos de idade incorporadas ao ensino fundamental obrigatório. A rede estadual, que mantinha um resíduo de matrículas nessas modalidades até 2006, praticamente encerrou o atendimento em 2009. Esse comportamento está diretamente associado aos dispositivos financeiros do Fundeb a partir da sua implantação. Ou seja, o Fundeb, ao ampliar a captura de receita dos estados e municípios e redistribuí-la de acordo com as matrículas da educação básica, o fez apenas no âmbito das competências de cada esfera de governo, que só contempla as matrículas de ensino fundamental e médio na rede estadual e as de ensino fundamental e educação infantil nos municípios. Portanto, o Fundeb passou a retirar recursos do governo estadual que antes poderiam estar direcionadas à manutenção daquelas matrículas. Diante disso, a decisão de encerrar esse atendimento e remetê-las aos municípios foi imediata. Correspondentemente, evidenciam-se as inclinações ascendentes mais acentuadas das creches e pré-escolas a partir dos últimos anos da série, movimentos induzidos pela possibilidade de obtenção de receita por intermédio do valor por aluno dessas modalidades. Aqui também cabe uma investigação, pois o crescimento das matrículas da educação infantil deve estar ocorrendo devido à incorporação ao setor público do atendimento antes realizado por instituições conveniadas ou mesmo pela regularização desse tipo de atendimento.
No ensino médio público, ocorre algo semelhante ao observado na educação infantil, mas de modo inverso e bem menos acentuado.
Gráfico 5 – Evolução da matrícula inicial do ensino médio da rede pública estadual e municipal de ensino – 1997-2009.
Fontes: BRASIL. MEC. INEP. Sinopses estatísticas 1997 a 2009.
Elaboração dos autores
O ensino médio estadual, por exemplo, mostra uma tendência ascendente constante no número de matrículas até 2003, incorporando perto de 100 mil matrículas. Perde metade desse acréscimo nos quatro anos seguintes e ensaia uma pequena ascensão com a entrada em vigor do Fundeb, já que as matrículas desta etapa são contempladas com um dos valores por aluno mais elevados. A rede municipal é inexpressiva no atendimento desse nível de ensino e pouco deve se alterar. O atendimento municipal existente tem de ser realizado com recursos além da vinculação dos 25%. Nesse aspecto, a LDB é claramente taxativa para os municípios, ou seja, estes só poderão atuar
[...] em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência [educação infantil e ensino fundamental] e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino. (Artigo 11, V)
Quer dizer, mesmo antes do Fundeb o atendimento municipal de ensino médio era realizado com recursos próprios acima da aplicação mínima para a sua área de competência.
A compreensão deste movimento do ensino médio estadual necessita da análise de outros fatores decorrentes de medidas de política educacional simultâneas ao Fundef e ao Fundeb que escapam ao alcance deste artigo. Por hipótese, supomos apenas que os programas de correção de fluxo do ensino fundamental implantados em período anterior ao aqui analisado repercutiram em rápida ascensão das matrículas de ensino médio até 2003, quando se esgota este movimento. Os mesmos programas implantados no ensino médio teriam invertido aquela tendência a partir daquele ano até 2007, quando o Fundeb introduz uma nova variável indutora de matrículas por meio do valor por aluno mais elevado que o do ensino fundamental. Importa acrescentar que o estado de Santa Catarina, segundo a Pesquisa Nacional de Amostra a Domicílios (PNAD) de 2008, apresenta uma das menores taxas de frequência bruta da faixa etária de 15 a 17 anos frequentando a escola, 81% diante de 84,1% para a média brasileira, o que quer dizer que 19% desse contingente de jovens ainda se encontram fora da escola. Atenua este fato a informação, da mesma fonte, de que 60% dos jovens nesse grupo de idade já estarem frequentando o ensino médio, percentual bem acima da taxa média brasileira de 50,4%.
No caso da evolução das matrículas de educação especial atendidas pela rede pública, o movimento mais importante é a notável ascensão das matrículas em classes comuns do ensino regular nas duas redes, mais evidente na rede municipal, vis-à-vis a redução de matrículas segregadas em escolas e classes especiais. Nesse desempenho, apesar do curto período de análise, pesam favoravelmente os efeitos da política nacional de educação especial voltada à inclusão (MEC, 2007), e, sobretudo, o peso mais elevado do fator de ponderação atribuído pelo Fundeb a essa modalidade de ensino em relação aos outros níveis e modalidades, próximo ao atribuído ao ensino médio. Assim, o valor por aluno mais elevado contribuiu para tornar mais atraente aos estados e municípios o esforço financeiro de inclusão das crianças com deficiência nas salas do ensino regular.
Gráfico 6 – Evolução da matrícula inicial de Educação Especial da rede pública estadual e municipal de ensino – 2005-2009.
Fontes: BRASIL. MEC. INEP. Sinopses estatísticas 1997 a 2009.
Elaboração dos autores
Apesar da importância desse movimento de inclusão, ainda são precárias as condições de infraestrutura e de formação de pessoal, muito aquém do necessário, sobretudo nos pequenos e mais pobres municípios. Essa é uma temática que necessita de estudos mais aprofundados, não somente por esse motivo, mas também devido ao tempo recente com que foram implantados os programas federais indutores da inclusão.
Por fim, este estudo não se deteve na análise da evolução das matrículas de educação de jovens e adultos devido à dificuldade de se estabelecer, a partir dos bancos de dados disponibilizados pelo INEP, uma sequência histórica tendencialmente consistente, o que nos faz remeter tal análise a outra oportunidade de reflexão.
Conclusão
As alterações legais na trajetória dos recursos financeiros vinculados para a educação básica pública, traduzidas, primeiro, no Fundef e, depois, no Fundef, induziram e promoveram importantes modificações na gestão e no comportamento das redes estadual e municipal de ensino em Santa Catarina.
É notável o papel indutor que os fundos têm promovido na oferta da educação básica, especialmente na descentralização e municipalização do ensino fundamental. Em Santa Catarina , esse processo não foi muito diferente do verificado em outros estados, ainda que a presença municipal na oferta do ensino fundamental tenha iniciado em período anterior, e aos programas aqui privilegiados.
O que a política de fundos, e em particular o Fundeb que movimentou uma soma mais vultosa de recursos, não pode encobrir é a insuficiência dos recursos financeiros atualmente disponíveis para atender a expansão com qualidade da escola pública, em todas as suas etapas e modalidades, incluindo a educação superior pública. A esse respeito, no horizonte educacional de financiamento está posto para os próximos anos a recente determinação de extensão da obrigatoriedade de ensino para as crianças de 4 e 5 anos e aos jovens de 15 aos 17 anos, sem falar na contida expansão das creches que sequer alcançou as metas estabelecidas no Plano Nacional de Educação que se esgota neste ano e a eliminação do analfabetismo ainda em altas taxas. Tendo em vista essas e outras demandas, a Conferência Nacional de Educação realizada entre março e abril de 2010 traduziu essas e outras necessidades educacionais por meio de elevação dos gastos públicos em educação para algo em torno de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro nos próximos dez anos. Atualmente, esses gastos alcançam, segundo o INEP, cerca de 5% do PIB. Santa Catarina, apesar de ser considerado um estado rico, certamente teria de contar com muito mais recursos próprios e transferidos pelo governo federal para cumprir metas como essas.
Na gestão do ensino, o movimento mais importante e evidente tem sido, como resultado da municipalização do ensino fundamental, a ascensão do município na oferta de educação básica ao lado do vertiginoso encolhimento do atendimento estadual. Essa constatação remete à necessidade de investigar a capacidade dos diferentes municípios de cumprirem com um padrão de qualidade aceitável sua obrigação de Estado na garantia dos direito educacionais da população brasileira que busca a escola pública.
Assim, não se pode deixar de adensar a preocupação com a permanência, senão a piora, da qualidade do ensino neste contexto e sua tradução em novas formas de exclusão educacional. A esse respeito, Valle, Mizuki e Castro alertam que a lógica descentralizadora viabilizada pela municipalização do ensino e pelo aumento da participação municipal na oferta de Educação Básica não tem se sido eficaz na eliminação das desigualdades. Segundo as autoras, “Sob o abrigo da descentralização, não se oferecem as garantias indispensáveis à igualdade de acesso a uma educação básica de qualidade” (2004, p. 208). Nesse sentido, nos parece acertada a afirmação das autoras de que, apesar da redistribuição trazida pelos fundos, os recursos financeiros necessários para uma educação de qualidade permanecem ainda centralizados nos governos estadual e, sobretudo, federal, tornando o município um mero executor de políticas decididas nos gabinetes dos ministros e secretários de educação.
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[1] Este artigo é um dos resultados parciais da pesquisa nacional intitulada Remuneração dos professores das escolas públicas de educação básica: configurações, impactos, impasses e perspectivas aprovada pelo programa Observatório da Educação do MEC, cuja realização em Santa Catarina é realizada pelo PPGE-Mestrado da UNISUL.
[2] Doutor em Educação. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação-Mestrado, da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Email: marcos.bassi@unisul.br.
[3] Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação-Mestrado, da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Email: phelipeprof@hotmail.com.
[5] A vinculação de recursos tributários para a educação foi introduzida pela primeira vez na Constituição Federal de 1934. Desde então, é retirada nas constituições dos períodos autoritários e retomada nos períodos democráticos.
[6] Valores atualizados pelo indicador IPCA, do IBGE, para reais de dezembro de 2009.
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